Com o tema “Literatura e Ancestralidades: o solo originário do gesto”, o escritor propõe outras formas de narrar o tempo na Sessão de Abertura que lotou o Centro Cultural
Com a alegria do reencontro e da retomada, o escritor Daniel Munduruku abriu as sessões literárias da Fligê 2022, na noite de quinta-feira (11). Em um Centro Cultural lotado, com pessoas do lado de fora se apoiando nas janelas para prestigiar as palavras do escritor, Daniel presenteou o público com suas palavras sobre literaturas, ancestralidades, e sobre o poder de preservar as memórias, viver o presente e celebrar outras formas de narrar o tempo.
Com o tema “Literatura e Ancestralidades: o solo originário do gesto”, o escritor falou sobre as nossas origens, não apenas sobre os povos originários, mas da nossa brasilidade, daquilo que nos faz mais humanos. “O que nos compõe são essas diferentes formas de olhar para o mundo”.
O poder de narrar histórias
O autor, que trabalha com as palavras e preserva a cultura brasileira e do seu povo em seus livros, relembrou como a história do Brasil foi construída por mitos, heróis e histórias narradas pela visão dos colonizadores. A ausência do direito à voz – para os indígenas e os povos escravizados trazidos para essas terras – transformou tudo o que não era europeu em inimigo, criando vozes consideradas subalternas.
Contar a história do seu povo, desse modo, é reforçar quem somos enquanto brasileiros, plurais e diversos, e preservar a história dos mais 300 povos indígenas e mais de 270 línguas que sobreviveram, abandonando as visões romantizadas e ideologizadas sobre os povos originários. “Tínhamos que nos orgulhar de viver em um país com tanta diversidade. Ela é a afirmação da nossa criatividade”.
O povo Munduruku está presente nas regiões dos estados de Amazonas, Mato Grosso e Pará, estado onde nasceu Munduruku. “Ser Munduruku é muito diferente de ser índio, ser Munduruku provoca nas pessoas a necessidade de saber que existe uma cultura, um povo que se chama Munduruku. Faz com que as pessoas saiam do comodismo”.
Nas culturas indígenas, contar histórias é preservar a vida, a memória, o povo. Para cada estação da vida – infância, vida adulta, e velhice – existe a obrigação de vivê-la em plenitude, e não apenas mirar para o futuro. “Os adultos são responsáveis por cuidar do corpo das crianças, e prepará-las para serem adultos. À criança, cabe o brincar. Já os velhos, eles cuidam da alma”. E esse cuidado da alma os anciões fazem por meio do ato de contar histórias e narrar a vida. “Os velhos atualizam a memória”.
Outras formas de narrar o tempo
Para Daniel, a forma de narrar o tempo dos povos ocidentais é desconectada da natureza, o que constrói um tempo linear, marcado em passado, presente e futuro. “Os povos originários não romperam com a natureza, nos sentimos a própria natureza, somos parte dela. Quase sempre os povos originários são retratados no passado, apesar da resistência por séculos”. Os povos originários, ao contrário, são um povo do presente.
As ancestralidades, para Munduruku, não funcionam com esse tempo “passado-presente-futuro”. Para ele, falar de Ancestralidades é falar de algo cíclico, de uma elipse no tempo que nos leva à estação da vida seguinte.
Para uma criança ocidental, uma das perguntas que mais se faz é “o que você vai ser quando crescer?”. Essa pergunta, segundo o autor, transforma as crianças em um projeto, um vir a ser, algo que vai se concretizar no futuro. “Não fazemos essa pergunta para uma criança indígena, porque sabemos que ela não será mais nada, pois já é tudo o que precisa ser”. É essa visão indígena do mundo é que dá aos povos indígenas a garantia da Ancestralidade.
Sobre a sua missão de narrar e utilizar a literatura para contar a sua visão de mundo, Daniel conta que aprendeu a cultura do ocidente sem abandoar os saberes ancestrais que aprendeu com seu povo.
“Os povos indígenas fazem um esforço muito grande para compreender o Brasil, mas o Brasil faz um esforço muito pequeno para compreender os povos indígenas. Tem sido um esforço grande de sobrevivência, de resiliência, das populações indígenas, no sentido de não se entregar àquilo que o sistema hegemônico quer que a gente faça, que é abandonar quem nós somos e aceitar uma identidade que não é a nossa. E, para o bem do Basil, apesar de todas as políticas nocivas que têm sido desenvolvidas ao longo da história, nosso povo tem resistido bravamente”.
A terra e a natureza
Para a preservação da história e da ancestralidade indígena, Daniel destacou a importância de ressignificar a terra e seus significados. “A terra para o indígena não é um negócio, é o lugar do sagrado, onde eu encontro a minha memória. Todo o lugar é sagrado porque é onde eu enterro os meus mortos, onde passaram os meus antepassados. A terra sou eu”.
O autor também pontou e celebrou as autorias indígenas na Fligê, destacando a presença dos povos originários não apenas na teoria, mas na acolhida da programação.
Foi com essa proposta de narrar o tempo de outras formas e celebrar a criatividade e as cosmovisões indígenas que os debates literários na Fligê começaram. Ao final, Daniel Munduruku afirmou: “Eu declaro aberta a Fligê”.
As mesas literárias da Fligê estão sendo transmitidas ao vivo, no canal do YouTube, com a presença de intérpretes de libras. Confira o vídeo completo a Conferência de Abertura com o escritor Daniel Munduruku.
Texto: Paula Janay| Fotos: Vinícius Brito.