Casarão das Letras: Conversas diamantinas entre ritos e paisagens

No dia 26 de julho foi discutido no Casarão Letras Diamantinas como o jarê, os saberes ancestrais e as questões étnico-raciais se entrelaçam no romance “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior.

No dia 26 de julho, às 11h, aconteceu no Casarão Letras Diamantinas, a mesa “Conversas diamantinas entre ritos e paisagens”, com Jovina Souza, Alex Conceição e Nadja Leite. A mediação foi de Cristina Pina. A discussão girou em torno dos entrelaçamentos entre o jarê, os saberes ancestrais e as relações étnico-raciais no romance “Torto Arado”, Itamar Vieira Junior.

O termo “jarê” de origem iorubá significa “cortar através”, outra possibilidade é que seja alteração do nome “njale”, palavra que designava uma cerimônia de povos da atual Nigéria e Benim. De modo geral, o termo é utilizado para designar a religião e ocasiões ritualísticas que surgiram no interior da Bahia, em meados do século XIX, nas cidades de Lençóis e Andaraí, na Chapada Diamantina. Essa manifestação religiosa se vincula ao surgimento da mineração na região, marcada pela mão de obra escravizada, nos locais que se configuram como quilombos. Através da história oral, o jarê se espalhou por diversas áreas da região entre os pretos, pardos, indígenas e caboclos, sofrendo perseguições policiais brutais e cerceamento por parte da Igreja Católica.
Atualmente, ainda que com dificuldade para manter essa religião viva, é possível identificar diversos terreiros de jarê na Chapada Diamantina, tendo muitos adeptos que continuam a praticá-lo. A prática religiosa foi desenvolvida por pessoas escravizadas e libertas provenientes das cidades de Cachoeira e São Félix, e que foram levadas à Chapada Diamantina devido ao garimpo. Ali praticavam o jarê de nagô e bantu, onde cultuavam exclusivamente os orixás africanos, com a convivências com descendentes de indígenas que habitavam a região, foi-se sendo incorporadas outras entidades representativas da cultura indígena, o que delineia a atual configuração do jarê: diálogo afro-indígena com catolicismo rural, umbanda e espiritismo kardecista.
De acordo com a pesquisadora do jarê e professora, Jovina Souza, “são as narrativas vividas por nossos antepassados pretos e indígenas. Essa junção do jarê que menciona os povos caboclos, isso é resultado de uma prática dos bantus, onde eles procuravam estabelecer relações com os donos da terra, os povos indígenas, então por isso que o jarê é muito forte no seu diálogo com os caboclos”, relata Jovina. Contudo, conforme se pode observar vamos identificar a presença de alguns elementos da cultura branca, o catolicismo, que para Jovina, foi outra estratégia dos povos pretos para se aproximar dos deuses dos brancos, numa tentativa vã de sensibilizar os brancos ao clamar por seus deuses, o que não deu certo. Essa é outra narrativa que pula das cantigas do jarê enquanto equívocos históricos.
Pensar o jarê e suas cantigas é pensar em são saberes ancestrais que evocam oralituras e oralidades. Para a pesquisadora e escritora Nadja Leite, a partir da leitura do livro “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, intenta pensar a decolonialidade do saber com o objetivo de confrontar o poder branco e os saberes do eurocentrismo. Para Nadja mesmo com a colonização e escravização, o povo negro não foi derrotado porque esses saberes ancestrais sustentaram essa população. “Como Nego Bispo diz: ‘porque mesmo que queimem a escrita, não queimarão a oralidade. Mesmo que queimem os símbolos, não queimarão os significados. Mesmo queimando o nosso povo, não queimarão a ancestralidade.’ Então mesmo que o projeto de governo dessa colonialidade tenha sido tão bem estabelecido não houve esse extermínio, de fato, de toda uma cultura”, diz.
Dessa forma, se observa que o jarê e os saberes ancestrais dos povos negros e indígenas estão ainda hoje presentes na nossa cultura. Como mesmo pode se notar no livro “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, as referências ao jarê e outros saberes ancestrais das mulheres idosas negras, das parteiras e curandeiras são encontrados no romance. Zeca Chapéu Grande, pai das narradoras, é um curador de jarê em sua comunidade, e é procurado para curar os males do corpo e da alma com rezas e raízes. Assim como Donana, avó das protagonistas da história, Bibiana e Belonísia, uma senhora negra que atuava como parteira em sua comunidade, um saber ancestral passado de geração a geração.
Para o pesquisador e professor, Alex Conceição, o fenômeno literário de “Torto Arado” se deve ao momento histórico em que o livro foi lançado, devido ao anseio da sociedade em ver representados em espaços de poder a população subalternizada. No livro é retratado em um período de reconhecimento das terras quilombolas, e a atualidade de Bibiana e Belonísia remete a isso. Além disso, para Conceição, Itamar Vieira Junior entende a importância da história para a formação da nossa identidade, tomando a história como um fundamento prático, pois ela serve para estruturar quem nós somos diante de nós mesmos, e em comunidade. As relações étnico-raciais são presentes no livro a partir de processos de inserção do negro e sua cultura na sociedade brasileira através das histórias contadas pelas protagonistas que revelam ancestralidade, saberes, cantigas de jarê e religiosidade.
Repórter: Larissa Caldeira
Fotógrafa: Lua Ife

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