Rios de memórias e matas de sentido: Fligê discute patrimônio como palavra viva

Mesa Especial reúne escritores e pesquisadores para refletir sobre arquitetura popular, cultura imaterial e preservação na Feira Literária de Mucugê (Fligê).

Uma cidade que celebra a literatura todos os anos nas edições da Fligê, Mucugê é um território da Chapada Diamantina onde a natureza, a cultura e a história pulsam para além das palavras escritas. É também nas ruas, com suas casas, sobrados, igrejas e demais monumentos históricos, que a memória é preservada. E seus moradores são guardiões que protegem e vivem uma cultura transmitida de geração em geração.

Durante a 8ª edição da Feira Literária de Mucugê, essa cultura que vai além do patrimônio material foi celebrada em uma conversa sobre memória, cultura e preservação da arquitetura e dos saberes tradicionais. A Mesa Especial “Rios de memórias, matas de sentido: Patrimônio como palavra viva” trouxe, na tarde da sexta-feira (15), um debate rico com o encontro entre a pesquisadora Márcia Sant’Anna, o escritor e arquiteto Fellipe Decrescenzo e o representante do Iphan, Hermano Fabrício O. Guanais e Queiroz, com mediação da jornalista Thaic Carvalho. 

Famosa por suas casas térreas e sobrados da segunda metade do século XIX, a arquitetura de Mucugê é frequentemente definida como colonial e seu conjunto arquitetônico e paisagístico foi tombado pelo Iphan em 1980. Para a pesquisadora Márcia Sant’Anna, no entanto, o rótulo “arquitetura colonial” é usado de forma geral para as produções arquitetônicas de cidades históricas brasileiras, deixando de lado características únicas de cada lugar.

“A maior parte da arquitetura que temos em Mucugê é uma arquitetura popular, feita a partir de saberes e conhecimentos passados de geração a geração, e a partir de técnicas construtivas de amplo domínio popular”, afirma Márcia. Para preservar a história e a dimensão imaterial do patrimônio de Mucugê, a pesquisadora enfatizou que a preservação vai além de manter os sítios históricos, é preciso reconhecer e valorizar esses fazeres e saberes.

O arquiteto e pesquisador Fellipe Decrescenzo explica que são os casarios térreos, construídos originalmente com a técnica de pau a pique, e os materiais como adobe (tijolos de barro cru) e alvenaria de pedra, que são a marca da arquitetura de cidades como Mucugê, Lençóis e a vila de Igatu. Atualmente, pintadas de cores vibrantes, essas casas e sobrados coloridos são uma marca do Centro Histórico de Mucugê. 

Decrescenzo lembra que esses materiais e técnicas fazem parte do processo de ocupação do território durante o ciclo do garimpo do século XIX. Foram essas pessoas, praticantes de um garimpo manual e artesanal, diferente do garimpo destrutivo da contemporaneidade, que vieram para a região em busca de condições de vida melhores. Ao ocupar e fundar a cidade, criaram uma arquitetura popular de qualidade e moldada pela natureza.

“Mucugê tem um caráter singelo, integrado ao ambiente. A natureza condiciona de algum modo essa ocupação. O próprio sítio físico, a conformação de Mucugê, com esses morros em volta, essa área plana de vale, ela também direciona a forma como a cidade é implantada”, explica o pesquisador, ressaltando também o Cemitério Santa Isabel, mais conhecido como Cemitério Bizantino, incrustado no paredão de pedra, e as ruas que contornam as formações rochosas, paralelas ao rio que era explorado pelos garimpeiros.

 

Preservação que nasce do reconhecimento de saberes para além das Letras

A conversa da Mesa Especial da Fligê ecoa ideias e pensamentos de escritores como Cecília Meireles e Edison Carneiro, que atuaram na defesa das culturas populares no século XX, e de um movimento que tem origens na Semana de Arte Moderna de 1922, quando escritores, artistas e intelectuais discutiram ideias que iriam culminar na criação do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em 1937. 

O representante do Iphan, Hermano Fabrício O. Guanais e Queiroz, lembra que Carlos Drummond de Andrade foi chefe de gabinete do órgão, enfatizando a profunda relação entre a literatura e as culturas tradicionais, que também passaram a ser reconhecidas como patrimônio. 

“Toda a base conceitual para os avanços no campo do patrimônio imaterial é gerada por quem tem um comprometimento com a produção do conhecimento. Não é possível pensar em preservação do patrimônio imaterial sem lembrar dessas figuras que estão criando memórias, também a partir de uma vasta documentação e preservação”, afirma Hermano.

Para a pesquisadora Márcia Sant’Anna, a preservação só se sustenta quando Estado e sociedade caminham juntos, sem hierarquias, valorizando a troca de saberes. “Criou-se a ideia na sociedade de que só o Estado preserva. Isso não é verdade. A preservação faz parte da sociedade. Inclusive, a noção de patrimônio imaterial mostra isso cristalinamente. Não foi o Iphan que preservou o samba de roda, foram as pessoas que fazem o samba de roda. Preservar práticas e bens é parte da humanidade, nós fazemos isso no nosso cotidiano. Se isso for feito e bem trabalhado, a gente vai ter muito mais chance do que se Estado, de cima para baixo, definir o que é patrimônio”. 

Após as falas dos convidados da mesa, durante a discussão com o público, a curadora da Fligê, Ester Figueiredo, participou enfatizando a corresponsabilidade que a Feira Literária assume em relação aos esforços coletivos para a preservação dos patrimônios culturais de Mucugê. “Agradeço à mesa pela oportunidade de escuta e debate para a gente fortalecer mais e ampliar essas políticas”. 

 

Texto: Paula Janay

Fotos: Thiago Gama

 

Este projeto foi contemplado no Edital de Apoio às Festas, Feiras e Festivais Literários (n.º 01/2024), por meio do Programa Bahia Literária, com o apoio do Governo do Estado da Bahia, através da Secretaria de Educação e da Secretaria de Cultura, via Fundação Pedro Calmon.
O edital é direcionado à modalidade de fomento à execução de ações culturais, conforme o Decreto Federal n.º 11.453/2023, a Política Estadual de Cultura (Lei n.º 12.365/2011), o Plano Estadual de Cultura (Lei n.º 13.193/2014), o Plano Estadual de Educação da Bahia (Lei n.º 13.559/2016) e a Lei Federal n.º 14.133/2021. O projeto conta ainda com o apoio cultural do Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia (IRDEB), vinculado à Secretaria de Educação do Estado da Bahia, por meio da Rádio Educadora FM e da TVE Bahia.


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