Castro Alves vive. Vive e ecoa pelas praças, pelos becos, na poesia diária da vida de quem persevera em favor de uma convivência humana que seja coroada pelo respeito e pela justiça, em oposição às tiranias que buscam novas formas de encarnar sobre a terra.
Contra esse obscurantismo que nos espreita, a arte constitui uma força de defesa e enfrentamento. É escudo, mas é também espada. Sem ela, que não reste dúvida, já teríamos padecido sobre o chão da batalha contra forças desumanizantes.
Mas os corpos resistem. Resistem e se reúnem – e é na coletividade que a arte e a cultura encontram sua expressão mais sublime. A vida é a arte do encontro e a reunião de indivíduos para a formação de novas consciências coletivas é tarefa revolucionária.
Na noite do domingo (18), a arte do encontro combinou poesia e música clássica de forma arrebatadora. A Orquestra Conquista Sinfônica, sob regência do Maestro João Omar de Carvalho Mello, nos remeteu à beleza artística do século XIX entre composições de Antonín Dvořák, Vivaldi e Chiquinha Gonzaga para refazer o tempo em que viveu Castro Alves, homenageado dessa edição da Fligê.
O poeta serviu de inspiração para a execução do concerto de encerramento. Para tecer a estampa dos cenários e contextos pelos quais percorreu o poeta, a Orquestra evocou o Romantismo, movimento que enquadra seus versos. “Castro Alves celebrou a humanidade”, afirma o maestro João Omar. “Ele cantou a liberdade. Nesse momento, precisamos da mesma coragem que ele teve”.
A música popular brasileira teve o seu momento de celebração na homenagem ao saudoso João Gilberto no violão de João Luiz Lima que, em um gesto de cumplicidade, convidou a enternecida plateia a entoar com ele os versos de “Chega de saudade”.
A poesia sinfônica do encontro entre Jackson Costa e João Omar arrebata o público
Enquanto as notas de “Eu não existo sem você”, composição de Vinícius de Moraes e Tom Jobim executada com arranjo de João Omar, inundavam o ar com tons azuis, o ator Jackson Costa nos lançava ao devaneio castriano ao declamar: “Estamos em pleno mar…”, e a orquestra acompanhava aquele movimento azulado e oceânico. “Dois infinitos ali se estreitam num abraço insano, azuis, dourados, plácidos, sublimes… Quais dos dois é o céu? Qual o oceano?”
À medida que Jackson avançava pelo poema, que ganhava contornos épicos e febris, os violinos e violoncelos se tornavam catárticos. E então, mostra-se a face do poeta abolicionista que se revolta contra as iniquidades, em um contraste àquele azul celeste, feito de paz e beleza: “Era um sonho dantesco… o tombadilho, que das luzernas avermelha o brilho em sangue a se banhar”, denunciando os horrores dos navios em que embarcavam os escravos, na poesia “O Navio Negreiro”.
“Enquanto tiver injustiça, Castro Alves vive”, afirma Jackson. “Ele é o poeta da liberdade, que nos mostra que não estamos sendo tão humanos quanto deveríamos. Enquanto houver a possibilidade de um canto artístico, poético, com música, orquestra, com palavra de luz, ele vive. A gente pode transformar o que não é belo no belo. Esse é o nosso propósito”.
“O Navio Negreiro” de Castro Alves sob luzes renovadoras
Ester Figueiredo, curadora da Fligê, conta que a linha curatorial fora definida a partir dos contextos históricos, culturais e literários do homenageado, com pesquisa literária de Clara Carolina Santos e consultoria de Jamile Borges. Mas, além de traçar a vida e a criação do poeta sobre o pano de fundo do passado, a abordagem escolhida recolocou a obra de Castro Alves nos dias atuais.
“Para atualizar a obra do poeta associamos sua obra a uma problemática atual, que ainda é o anseio de liberdade”, diz Ester, evocando o lema “Sê livre… és gigante”, norteador da Feira. “O anseio por uma perspectiva humanista de convivência social e o combate às grandes escravidões que vitimizam multidões, tanto no Brasil como no mundo todo. Esse reposicionamento é necessário para a gente poder continuar dizendo que a literatura vive, e a literatura vive como obra que denuncia e que anuncia novos horizontes para formação humana”.
A curadora ressalta o diálogo da literatura com outras artes como fio condutor da construção da Feira. “Priorizando a obra literária, a gente redefine o diálogo com vários formatos de linguagens e gêneros, como cinema, teatro e música”. Também consideraram o acesso à programação do evento para públicos de todas as idades. “A presença do homenageado e do tema esteve tanto para o público infantil, adulto e idoso. Destacamos a palavra literária, o texto literário, por meio dessa potência que ela tem de revelar, de criar, de imaginar, uma educação literária”.
O deputado federal Waldenor Pereira também ressalta a liberdade como mote fundamental para os debates transcorridos na Fligê. “Tivemos a oportunidade de homenagear Castro Alves, grande poeta baiano, e através dele exaltar a liberdade como princípio fundamental da pessoa humana. A decisão de homenageá-lo nos permitiu apresentar a feira literária como uma resistência democrática, porque nada melhor do que a literatura, a arte, a cultura para fazer frente a essa onda conservadora, reacionária, que se abateu sobre nosso país”.
Além de colorir com cultura as ruas e a vida de Mucugê, a Feira Literária também constitui um incentivo econômico: 200 servidores da prefeitura se envolveram direta e indiretamente com o evento; a logística local soma mais de R$ 50 mil em investimentos; o comércio aumentou em cerca de 70% suas vendas e 100% dos hotéis e pousadas foram ocupados. Cerca de 3 mil pessoas visitaram a Fligê, acumulando um público de 10 mil visitantes entre moradores e turistas.
Além disso, a Fligê fortalece o valor turístico da cidade e ajuda a atrair visitantes não apenas durante a realização do evento, mas também para o decorrer do ano. A estimativa é de que o retorno financeiro da feira literária alcance o valor de 10 milhões de reais.
E assim se encerra mais uma edição da Fligê: como um sopro a reacender esperanças e inspirar terrenos fecundos, onde verdejem sonhos de liberdade.
Texto: Érika Camargo | Fotos: Karen Almeida | Vídeo: Moisés Ribeiro