Nosso Homenageado

Em 2019, a Fligê homenageia o poeta baiano Castro Alves.

 

DE CASTRO ALVES AO DEVIR-NEGRO: DISTOPIAS E DIÁSPORAS

Por Jamile Borges – consultoria

 

A Feira Literária de Mucugê – FLIGÊ assume, em 2019, o desafio de recuperar a representação da fortuna literária de Castro Alves, reinterpretando sua vasta e complexa obra em recortes de imagens que revelam as diásporas e distopias em movimento de tensão permanente nos navios negreiros, nas tragédias e nas (re)encenações do passado colonial retratados com densidade poética e com as dores ancestrais de homens, mulheres e crianças no trânsito Atlântico.  

A FLIGÊ pretende colocar em perspectiva as noções de afrofuturismo, diásporas e distopias como esquemas interpretativos para ler os dias atuais a partir da produção literária, das novas lentes de jovens e experientes autoras e autores que intentem refutar o legado colonial das narrativas ficcionais hegemônicas e sua obsessão por uma África pueril, feminina e débil, prestes a ser invadida e subjugada. Do mesmo modo, desejamos atrair todas as leituras que ensejam reescrever as grandes histórias e narrativas sobre o passado colonial brasileiro, tal qual o fez Castro Alves, subvertendo o racismo, o heteropatriarcado e a misoginia comum em clássicos do gênero para tornar inteligíveis esses mesmos problemas ainda hoje.

Será necessário enfrentar as questões raciais e o legado colonial do gênero literário para apontar como nossa literatura ainda carece de representação das culturas afrodescendentes e diaspóricas em suas narrativas, em especial no campo da ficção científica, por exemplo.

Os conceitos afrofuturismo, AfroUfanismo, AfroPessimismo ou AfroUtopias são ainda experiências discursivas e manifestações artísticas e teóricas que intentam reinventar criticamente a ideia de  ancestralidade africana, ao tempo em que performatizam um futuro que se constrói através do entendimento de outros processos civilizatórios, científica e tecnológicamente afrocentrados. Dito de outro modo, interrogamos como produzir outra engenharia discursiva que permita compreender esse novo movimento estético, político e cultural conhecido como AFROFUTURISMO? 

A África e os territórios da diáspora foram traduzidos nos textos literários como aquele território mítico da origem, Éden negro, reserva de exotismo e resistência, e também de escravidão e espoliação. Vista através do afrofuturismo ela pode se converter em um signo de transculturalismo, buscando articular e dar visibilidade a uma  miríade de novos artistas, escritores, cineastas e intelectuais que têm produzido obras importantes para compreender a África contemporânea e desenhar futuros possíveis.

O Afrofuturismo, então, tenta combinar elementos ultramodernos com resíduos da memória ancestral. Uma tentativa de criticar – enquanto performatiza – a obsolescência planejada como um subproduto do capitalismo global, assim como a obsolescência e o apagamento dos traços e vestígios da cultura material e intelectual dos povos africanos e afrodiaspóricos.

O Afrofuturismo se apresenta como um movimento estético, político e crítico, cuja característica em comum em quase todas as obras afrofuturistas é a construção de uma narrativa alternativa e fantástica para as experiências das populações negras no passado, no presente e no futuro. Ou seja, é um movimento que parte das realidades históricas e sociais e propõe fabulações, releituras, reinvenções. Tanto com o objetivo de reinterpretar o passado, quanto o de fantasiar o futuro. Na construção dessas narrativas, as obras afrofuturistas misturam elementos da ficção científica, do hiperrealismo, da fantasia e das diversas mitologias de origem africana.

O que a prosa e a poesia de Castro Alves podem oferecer ao diálogo com as distopias afrofuturistas? Como apreender e evidenciar os conflitos e contradições presentes no texto de crítica social do poeta dos escravos com o discurso de reivindicação de uma negritude moderna em seus contornos e a neocolonialidade de suas representações literárias? Como narrar a passagem do letramento etnocêntrico para situar as memórias afrodiaspóricas entre a lógica da razão ocidental e as astúcias da razão oral?

Que conhecimento sobre África, Brasil e diásporas africanas podem nos ajudar a reconciliar a história de nossa ancestralidade e, ao mesmo tempo, fornecer ferramentas para construção de novos futuros, de futuros possíveis para outras utopias afrocentradas e poéticas?

Como juntar no mesmo tabuleiro poético o vigor do pensamento de Frantz Fanon e Aimé Cesáire com a sinuosidade dos fonemas e a prosódia de Castro Alves, poeta datado e ainda ressonante nessa Baía-Bahia em estado de devir-negro ? O que significa habitar lugares de fala em contextos em que as noções de cor, raça e a história da diáspora refletem utopias/distopias futuristas reposicionando noções clássicas como identidade, interconectando a estética formal com as abordagens literárias afrofuturistas, produzindo uma renovação epistemológica sobre velhos conceitos e discursos ?

Esperamos que essa edição da FLIGÊ 2019 ponha em contato as feridas de nosso passado colonial – há uma gota de sangue em cada museu afinal, diz o museólogo Mário Chagas – com a possibilidade de uma cura pela palavra, redenção literária e poética que nos ajude a desenhar outros futuros para as populações negras e diaspóricas.


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